Cabelo crespo está na moda?

Hoje proponho uma conversa inadiável. O movimento de volta ao cabelo natural está nas ruas. E quando falo aqui de movimento, não considero que a rigor exista de fato um grande grupo organizado em torno de fins comuns. Tratam-se de gestos individuais, de ações pontuais de pessoas que decidiram passar pelo processo de transição capilar, algumas vezes até sem saber que ela tem esse nome. E tratam-se também de vários grupos que de maneira independente ou interligada, se formam em torno da transição da capilar e questões afins, promovendo encontros, eventos, ações, etc; Brasil afora.

A partir do momento em que constatamos que o cabelo natural, especialmente o cabelo crespo, é marcado por uma série de símbolos, fica clara a potência da volta ao natural. Nossos corpos são pensados a partir da cultura, e é a partir da cultura que o que é “bonito” ou “feio” é concebido. A história brasileira marcada pela escravidão negra deixou uma herança perversa de racismo. Assim, a cor da pele, o formato do nariz, a espessura dos lábios e a textura do cabelo da população negra foram colocados ao longo do tempo, na esfera das características ruins, negativas, não belas. Nos corpos circulam padrões de beleza. Nos corpos residem os focos de opressão e resistência. Sob essa perspectiva, a relação entre cabelo crespo e a questão identitária aparece.

Agora assistimos o puxar de cordas. De um lado, aqueles que defendem que a volta ao cabelo natural que tem crescido nos últimos anos não é “moda”. De outro, jornais, revistas, programas televisivos, dentre outras mídias que abordam o assunto sob essa perspectiva.

A batalha pelos possíveis significados da volta ao cabelo natural evidencia o poder explícito das palavras, um poder que não deve ser ignorado. A linguagem é fonte de poder. Assim, designar esse movimento apenas como “moda” pode representar a redução de um ato político de luta e resistência a uma tendência que pode ser consumida.

Cabelo crespo está na moda? - mulher negra, cabelo crespo e modaCabelo crespo está na moda?

A moda carece de reconhecimento e adesão. Muita gente tem buscado um modo para usar os cabelos cacheados confiantes que eles “estão na moda”, “em alta”, que são “tendência”. Isso é inegável. O crescimento do número de produtos e serviços com essa finalidade está aí. Por outro lado, causa estranhamento para muitas mulheres que passaram pela transição capilar ou que sempre usaram seus cabelos naturais ouvir que os seus cabelos “estão na moda”. Essa noção de que os cabelos naturais só estão sendo usados assim porque “estão na moda”, oculta o fato de que o cabelo natural é tal como é. As pessoas parecem ter esquecido que existem cabelos  naturalmente bonitos sem a ajuda de produtos químicos e que ter os fios naturais não significa, necessariamente, “ter personalidade”, “ter estilo”. Usar o cabelo natural às vezes é simplesmente escolher usar o cabelo natural. Ponto.

Lançar os cabelos cacheados no plano daquilo que é “diferente”, “exótico”, abre espaço para uma tolerância passageira, que pode até durar apenas uma estação. Aliás, esse espaço é bem pequeno. Aparentemente, nele só cabem os ondulados (perfeitamente desarrumados?!) e cacheados definidos. Os cabelos crespos continuam na outra ponta, pouco representados. Diante disso, fica difícil comemorar. A moda não contempla a todos. Deixa negras, gordas e crespas de lado.

A moda é demasiadamente mutável e nos lança num estado constante de desatualização e de inadequação. Por isso mesmo, a tentativa de enquadrar a experiência de volta ao natural enquanto “moda” e só como “moda” causa desconforto. A moda é passageira, tem data para começar e para terminar, coloca seus seguidores sob a pena de mudarem ou serem deixados para trás.

O movimento de volta ao natural pode falar de outras coisas e levar nos levar a outros rumos: um processo crescente de valorização da estética negra, de empoderamento de mulheres, de criação de novos espaços de discussão. Assim, o cabelo natural representa para muita gente um caminho que começa a ser trilhado, que ainda vai enfrentar muitas curvas mas  que avança sem volta.

Fontes:

“Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”. Nilma Lino Gomes. Autêntica, 2008.

“O que é ser Contemporâneo”. Giorgio Agamben. Argos, 2009.

 

Maressa De Sousa

Maressa, 30 anos, baiana. Cientista Social, mestra em Antropologia. Terapeuta capilar, cabeleireira e trancista. Ama filmes e livros de ficção. Para ela, a transição capilar marcou o início de muitas outras transformações.

Blog Comments

Ainda não entendi essa do “cabelo cacheado está em alta” ou “cabelo cacheado é moda”. Sério, como assim moda? Usar uma coisa, tal como ela é de fato, pode virar moda? Não uso meu cabelo cacheado porque é moda ou tendência, uso porque ele é assim e pronto. “Cabelo natural é tendência, confira dicas pra deixar seu cabelo mais natural”. ¬¬

Na verdade o que eu acho que está acontecendo não é uma onda de aceitação e tudo mais em relação ao cabelo natural. O que eu vejo é que um monte de gente resolveu voltar porque cansou das químicas, e a mídia está se aproveitando disso pra dar dicas, vender produtos e lançar uma nova moda (viu aí uma oportunidade de ganhar dinheiro). Tenho medo do cacheado virar o novo liso, e ao invés de começarmos a fazer química pra alisar os cabelos, passar a fazer química para “cachea-los” e “domá-los”. Já consigo até ver as promessas “tenha um cacheado perfeito com tal produto”. “Novo shampoo cachos perfeitos”. Que medo

Oi Mariana, tudo bem?

Acho que essa reação das marcas e a criação de novos produtos que prometem cachos domados e definidos já chegou viu. TODOS os produtos que eu tenho para cabelos cacheados prometem reduzir o volume por exemplo, o que é horrível pra mim, mas eles devem achar que é uma vantagem né?

As empresas estão atentas ao mercado e até marcas conhecidas por lançar produtos apenas para cabelos lisos entraram na onda de cabeça. Claro que algumas escutaram as mulheres que estão usando o cabelo natural e criaram um produto pensando um pouco nas necessidades delas. Outras lançaram suas novas linhas de produtos sem levar em consideração alguns dos nossos apelos e continuam usando por exemplo, parafina líquida nos seus produtos mesmo com suas caixas de emails e inbox cheios de pedidos para retirada. As mulheres cacheadas e crespas são um público para essas marcas, mas até onde elas estão falando nossa língua é que eu não sei :/

Abraços!

Falou muito.
falou tanto.
disse (prticamente) tudo.

.
q haja amor, por nós, pelos outros, pela vida.
com amor há respeito….
xêros!

Siiiiim <3

Beijos!

Maressa, você já passou pela transição? Se sim, por quanto tempo ? Você tem fotos ?

Oi Leticia, tudo bem? Passei sim :) Tenho dois anos de natural já. Nessa postagem aqui tem algumas fotos e a mini história do meu cabelo. Fiz meu bc rapidinho, depois de alguns meses de transição. Não aguentei de ansiedade pra ver meu cabelo natural! hahaha você vai ver que numa das fotos meu cabelo tá curtíssimo. Fase maravilhosa <3

http://cacheia.com/2015/04/se-meu-cabelo-falasse/

Abraços!

Abraços!

Lindo texto. Perfeito!
A Nilma Lino Gomes eh irma do meu professor de filosofia politica. Está representando muito bem as mulheres negras.
Parabéns meninas! *-*

Com certeza Bárbara! <3 representa demais todas nós!

Adorei o texto. Você tem ótimos posts. Fico orgulhosa das questões que o Cacheia propõe, respeitando os lugares de fala de mulheres negras que tem um histórico muito doloroso com a auto imagem numa sociedade racista.
Penso que tratar o cabelo Crespo como tendência é similar ao tipo de tratamento que o sistema dá à qualquer movimento que contradiz o próprio sistema. O movimento punk vira cinto de taxinha e coturno, o Che vai parar em estampas de camiseta em grandes shoppings e os nossos cabelos, fruto de um histórico que só nós conhecemos vira “uma peruca sujeita à mudança de estação”. Na verdade, trata-se de uma dificuldade muito grande de ver, os movimentos puxarem os debates e tomarem conta de seus próprios corpos. Tratar como “moda” é desmobilizar.
Vejo que mesmo em grupos de mulheres em transição, no facebook mesmo, existe essa noção de que algumas estão alí “só” por moda. Não sei se acredito muito nisso e acho que nos segrega entre as “seguidoras fiéis da transição” e as ” traidoras que estão alí só pelo momento”.
Continue com esses textos maravilhosos!

“O movimento punk vira cinto de taxinha e coturno, o Che vai parar em estampas de camiseta em grandes shoppings e os nossos cabelos, fruto de um histórico que só nós conhecemos vira “uma peruca sujeita à mudança de estação”. Totalmente isso Gabriela!

Sobre essa divisão, também acho ruim. Tenho visto muitas mulheres procurando voltar ao cabelo natural porque perceberam que agora um espaço para o cabelo cacheado foi aberto e porque querem “abandonar a química”. Então procuram por cabeleireiros cheias de nostalgia e esperança de que o processo seja bem rápido, quase automático. Algumas já procuram esses profissionais com as características dos fios que desejam em mãos: “Queria deixar meu cabelo igual o de fulana”, “quero meus cachos soltos” … Tem quem queira um black power lindo, tipo 4C? Sim. Mas tem quem procure só pelos cabelos cacheados e definidos (mesmo sabendo que sua textura anterior não era assim). Aí umas procuram o BN, algumas fazem permanente, outras ficam só nos grupos, páginas, blogs e fóruns e não lançam mão dessas técnicas criar ondulações e cachos. As trajetórias são mesmo diferentes. Mas existem questões que vão perpassar todas nós. A compreensão de que a volta ao cabelo natural, especialmente o crespo, tem potência política não acompanha todas desde o início. Não me acompanhou, por exemplo. Eu entrei em transição porque meu cabelo já não crescia e estava realmente bem maltratado. De repente descobri que era possível voltar ao natural através de uma blogueira e entrei de cabeça nesse processo. As outras coisas vieram depois e acho que podem vir depois para as outras mulheres também. E mesmo se não vierem, isso não me preocupa. Para ser potente não precisa ser hegemônico (Agamben). Acho que a oposição deve ser relacionada à instituição em si, ao sistema, não aos sujeitos. No mais, acredito nas micropolíticas :)

Agradeço muito pelo carinho e pelo incentivo. Meus amigos mais próximos sabem que sou bem insegura quanto ao que eu escrevo. Colocar essas ideias aqui é um desafio enorme e tem uma importância enorme pra mim.
Abraços!

Perfeita em cada linha.

Acho incrível tudo o que está acontecendo, faz 8 meses que estou em transição, e se não fosse vocês e a mídia, provavelmente estaria super alisada…

Mas, em contrapartida, tenho a sensação que a sociedade não está preparada para nos “aceitar”, e muitas de nós ainda somos muito influenciáveis/sensíveis quando se trata de cabelo, foram anos se escondendo, assumir é difícil. Eu, particularmente, estou me achando horrível, mas sei que tudo isso faz parte e vai passar – já acho os meus cachos lindos.

Agora, quanto a mídia, eles vão se acostumar sim, basta não desistirmos da divulgação, que cabelo afro/cacheado é cabelo bom sim, é só questão de “educar” uma população que não está acostumada. Acredito que tudo isso faz parte, mudanças são complicadas, eles vão dar todos os tipos de nomes possíveis para o cabelo natural. Definitivamente, as pessoas não estão acostumadas a aceitar as outras como elas são.

Infelizmente, são décadas de preconceito… apesar de tudo, vejo sim uma luz ao final do túnel.

Obrigada pela reflexão e pelas dicas diárias, beijos.

Oi Keity, tudo bem?

Acredito que é necessário continuar nesse movimento de desconstrução de preconceitos e avançar na valorização dos nossos crespos e cacheados. Levantar essas discussões não é lá muito fácil porque muita gente acha “bobagem”, “perda de tempo” e até outras coisas que prefiro nem falar aqui. Mas é isso aí, o jeito é seguir. Também vejo essa luz no fim do túnel, uma pontinha de esperança de deslocar as coisas de lugar :)

Abraços!

Bem isso, Maressa! Precisamos desconstruir essa imagem de cabelo bom ou cabelo ruim, é tudo cabelo, e ponto.

Eu abracei a causa, literalmente, e por meio da minha tia, a família inteira está assumindo os cachos, não por pressão ou imposição, apenas passamos a nos amar do jeito que somos – e se a pessoa é feliz alisada, por mim, tudo bem. E isso vai sendo encaminhado para vizinhos, amigos e pessoas do nosso convívio.

Espero de verdade que esse mundo melhore, e que não coloque esse tipo de imposição para gerações futuras, sem preconceitos, cada um com sua cor de pele, escolhas, cabelos, etc.

Muita esperança e força de vontade para nós!

Sabe o que eu acho? As pessoas já estão no limites delas. Eu mesma, embora não tenha cabelos crespos, e nem lisos e nem cacheados, era um problema sério. Muito cabelo, ressecado e todo mundo dizendo pra baixar que ficaria melhor… Estamos é cansadas! De fazer tudo o que os outros querem, e nem nos dar tempo de perguntar: Sim e o que eu quero? Essas questões vale pra tudo hein!?

Oi Camila!

Essa questão de cansaço e desgaste acontece mesmo. Muitos tratamentos e técnicas exigem manutenção contínua se não desandam. Parece que o tempo livre é cada vez mais uma raridade :/ A cobrança feita especialmente sobre nós mulheres para manter tudo “em dia” é enorme. É desnecessária. Ninguém é obrigado. Não somos obrigadas. Então acho que muita gente também está simplesmente dizendo “não”. Não, não vou fazer progressiva. Não, não vou alisar. Não, não vou me calar. Não, não vou me submeter a isso. Não, não dou conta disso. Não, não quero. Ponto. E o “não” também tem um poder enorme.

Abraços!

Sim é verdade Maressa. Concordo em tudo o que vc falou. As mulheres cada dia estão entendendo como funciona ” o mundo do deve se”. Estávamos com o véu de Isis, e agora estamos enxergando a realidade. Há um ditado que diz mais ou menos assim: ” Faça o que todo mundo diz, eles ficaram felizes, exceto vc”
Estamos numa era de comunicação, e realmente esse é o nosso maior poder. Nossa voz, voz que não vai se calar.

Por mais q para algumas seja modismo, creio q mesmo assim a maioria vai continuar com o natural (falo por mim). Pq voltar pra sofrência de gastar rios de dinheiro com progressiva de 3 em 3 meses, ou perder duas horas esticando e queimando o cabelo no secador e na prancha e ficar a semana toda sem lavar pra aproveitar o maximo a escova n compensa por nada! Hahahaha
Ainda mais com o clima quente e tals. Mas ja quem faz o estilo de cachos na quimica, ai sim quando a “tendência” passar podem tirar os cachos. Lembram q cabelo volumoso com aspecto de crespo era super moda da década de 80? Pois é…passou. Mas o que importa é quem tem consciência do q significa se assumir ao natural, e torcer pras que ainda nao têm essa consciência um dia terem e se unirem a nós. CURLYPOWER!!! hehehehe
\o/

Oi Bárbara, tudo bem?

Eu torço demais para que esse movimento continue! <3 E acho mesmo que esse é um passo definitivo para muitas de nós.

Abraços!

Meninas, vcs podem me indicar alguma marca de tintura para o cabelo que não estrague os cachos? ;)

Oi Grazi, tudo bem?

Olha, vou ter que confessar que não entendo nada de tintura! hahaha então vou colar aqui embaixo pra você a resposta da nossa ruivíssima Rayssa, que tem mais experiência com esses processos:

“Toda tinta acaba estragando o cabelo de um jeito ou de outro. As que estragam menos: hennas naturais, as hennas da Surya, os tonalizantes, o Casting Creme Gloss. Mas essas também não tem aquele poder de clareamento ou depósito de pigmento potente, né? O que tem esse potencial maior são essas tintas + ox de 30 volumes mas eu não acho que estraga tanto assim não anyways”

Abraços!

Entendi. Obrigada por tirar minhas dúvidas! ;*

[…] Cabelo crespo está na moda? […]

Texto muito bom.
O engraçado é q quando começamos a transição para um cabelo crespo mesmo (tipo4), muitas pessoas aceitam e acham lindo, mas logo após o bc essas mesmas pessoas aparecem com vários salões e produtos para “soltar os cachos”, porq acham q nosso cabelo d verdade ñ merece realmente aparecer. Então o cabelo natural ñ deve ser natural?
Q sociedade complicada :-(

Leave a Comment