Esse fim de semana fui ao cinema assistir Moana – eu amo animações! Para quem ainda não conhece, o filme conta a história de uma adolescente que decide navegar pelo Pacífico para salvar o ecossistema e sua ilha. Lindinho, né? :’) Apesar da premissa agradável, vi várias críticas e discussões no facebook. Alguns defendiam que é um filme produzido pela empresa mais capitalista que você respeita: a temida Walt Disney. Outras pessoas diziam que é um filme representativo de mulheres não ocidentais de pele morena, logo devíamos ficar felizes e gratas. Acredito que a questão é um pouco mais complexa que isso. Por isso, peço licença para fugir um pouquinho da temática de cabelo. Vamos falar sobre Moana?
Onde se passa a história – e porque isso importa
O filme conta a história de uma tribo na ilha fictícia de Motonui. Apesar de a ilha ter sido criada especialmente pro filme, a história se passa na Polinésia, um lugar muito real que reúne mais de 1000 ilhas. Assim como o Brasil, a Polinésia tem um passado e presente duro de colonização e exploração de seus povos nativos. Fui buscar referências na wikipedia, dados sobre as populações e onde se encontravam no mapa. No final, descobri que eu já conhecia a Polinésia por meio de relatos e etnografias de antropólogos, já vi representações do Havaí e de seu povo. Também já sabia da existência da Nova Zelândia, mas nunca havia dado nomes aos bois. Louco, né? Aposto um doce de caramelo que você também já viu por aí :) As ilhas da Polinésia foram/são colonizadas pelos britânicos, franceses e estadunidenses. Moana tem como objetivo representar a geografia, cultura, natureza e povo das ilhas da Polinésia.
Quem fala sobre Moana?
As perspectivas sobre mulheres, minorias raciais, étnicas e de comunidades marginalizadas estão ausentes ou indisponíveis na literatura, no cinema e na história. Não é novidade que quem têm o poder de representar e descrever os outros irão controlar como esses outros serão vistos. Essas representações criam esteriótipos e exotismos que são usados para inferiorizar, explorar e privar sujeitos de direitos, criando hierarquias raciais. Essas representações aparecem em músicas, séries de TV, filmes, novelas, pinturas, esculturas, literatura e trabalhos científicos. Quem nunca ouviu o esteriótipo de brasileira puta em alguma dessas mídias, por exemplo, que atire a primeira pedra. :) A representação do outro está profundamente amarrada com os processos de colonização. Edward Said, que é um autor pós-colonial importantíssimo, nos fala que esses relatos fictícios criam lugares ou povos na mente das pessoas, que não são compatíveis com a realidade.
Como vocês pode ver, Moana foi criada e produzida por um time criativo branco e majoritariamente masculino. Por isso, não basta termos personagens contra-hegemônicos em filmes. Queremos Moanas não esteriotipadas, e mais importantes: queremos Moanas produzindo e dirigindo os próprios filmes e desenhos, e lucrando com eles também.
Histórias que exotizam e esteriotipam
- No filme Busca Implacável (Taken), imigrantes mulçumanos sequestram a filha de um detetive estadunidense. Os imigrantes vivem em Paris e são retratados como pessoas sexistas, traficantes de pessoas, cafetões, sujos e violentos.
- Na animação Rio (</3), os brasileiros são mostrados como festeiros e bagunceiros. Os personagens negros são ladrões e malandros.
- No seriado 2 Broke Girls (2 Garotas em Apuros), o administrador do restaurante é um asiático viciado em trabalhar que coleciona esteriótipos relacionados à assexualidade e ao perfeccionismo.
- No filme Independence Day, o continente africano é retratado como bárbaro e descivilizado, em contraste aos Estados Unidos e Austrália. É comum que países da África e América do Sul sejam retratados como savanas, bosques e espaços de imensa pobreza e miséria.
Spivak, em “Pode o subalterno falar?” conclui que os sujeitos colonizados estão fadados a mal compreensão ou mal representação, sujeitos eternamente ao silenciamento. Será que Moana passa por um processo de exotismo? Acho que ainda é cedo para falar. No entanto, achei prudente procurar nas gringas (viva o Google!) o que os habitantes das Ilhas Polinésias têm a dizer sobre Moana.
O que os polinésios dizem sobre o filme?
Richard Wolfgramm, de Vava’u, Tonga, caracteriza o semideus Māui como “repetidamente misógino” e “egocêntrico”. De acordo com ele, o personagem do filme da Disney não tem nada a ver com as lendas e as histórias que ouvia quando criança. Tenso, hein Disney? Já Gina, para o Buzzfeed, diz que ficou feliz que a filha pequena teria a sua beleza representada. Jacosa, de origem samoana e caucasiana, revela que as cenas com a avó de Moana foram uma representação autêntica e real de sua própria avó.
Outras pessoas apontaram que a fantasia da Disney de Maui, que “imitava” a pele marrom do personagem, seriam uma demonstração de racismo pela produtora. Por fim, Kahea, de origem havaiana, reclama da mistureba de culturas que foi realizado no filme. De acordo com ela, muitas pessoas poderiam achar que se tratava de uma cultura só, e de músicas havaianas, quando de fato, não o é.
Riqueza visual e de trilha sonora
Moana é um filme que foi produzido inteiramente em computador. Ou seja: não tem nada de papel! O visual do filme me deixou de boca aberta durante todo o tempo, especialmente o oceano. Os pequenos detalhes foram bem trabalhados e fazem a diferença: desde cocos caindo no chão, até os cabelos de Moana movendo com o vento. As expressões e emoções dos personagens também foram bem desenhadas. É de aplaudir de pé, igreja! A trilha sonora não fica para trás: as músicas do filme emocionam, são colocadas no momento certo e foram bem traduzidas e dubladas para o português brasileiro. No original, foram compostas pelo polinésio, de Samoa, Opetaia Foa’i, por Mark Mancina e por Lin-Manuel Miranda. É injusto que as músicas não estejam sendo cantadas a plenos pulmões como aconteceu com Frozen.
Afinal, a Disney é uma empresa legal?
O que vem na sua cabeça quando falamos em Disney? Na minha mente, imagino lindos castelos cheio de brilhos e de alegrias. Para outras pessoas, no entanto, é uma empresa maldita que explora comercialmente uma imagem fútil e vazia de felicidade. (eita!) O fato é que a Walt Disney é uma multinacional global de mídia de massa e de produção de entretenimento. A companhia se fragmenta em dezenas de subsidiárias e divisões. Uma delas é o estúdio de animações da Disney, que já produziu 56 filmes, desde 1937, ano em que lançou a famosíssima Branca de Neve. Eles têm poder, baby, e estão no mundo todinho! Colocando todo esse $$poder$$ de lado, reuni algumas controvérsias bizarras a qual a Disney está envolvida;
Controvérsias mais recentes
- A primeira diretora mulher de um filme da Disney, Brenda Chapman, foi removida no meio (!) da produção do filme Valente. A história da Merida nasceu da relação pessoal de Brenda com a própria filha. Apesar disso, ela foi substituída por um diretor homem. A justificativa usada foi a de “diferenças criativas”. Sobre o caso, ela diz (em tradução livre):
“Algumas vezes mulheres expressam uma ideia e são silenciadas, apenas para ter homens expressando essencialmente a mesma ideia e tê-la amplamente abraçada e aceita.”
- A Disney tem um histórico bizarro de representação de povos nativos americanos, negros e árabes. São muitas as críticas de que a emissora produziu e produz conteúdos racistas.
- A Disney lucra horrores porque reviveu uma divisão comercialmente morta da Nike, vendendo para crianças uma imagem feminina de princesas: belas, brancas, recatadas, submissas e cheias de frufru.
- Também estão envolvidos em controvérsias de trabalho escravo em fábricas da China.
Essas são apenas algumas das críticas enfrentadas pela empresa. É por isso que apesar da evolução recente dos filmes, a Disney ainda está bem longe de ser uma empresa boazinha.
Vale a pena assistir Moana?
A Walt Disney Animation Studios está em um processo de renovação de suas produções, já iniciada por Enrolados, Frozen e Zootopia. Moana surge como o auge dessa nova fase, com um filme centrado em uma personagem feminina. A história também não é centralizada em um envolvimento romântico. Na dublagem original, a estreante Auli’i Cravalho foi escolhida das ilhas do pacífico para interpretar Moana, e tem sido aplaudida pela crítica internacional. Apesar disso, ganhou muito menos que o The Rock, que atua no papel do semideus Maui.
Vale a pena assistir Moana apesar de todos os problemas. Não amo Moana apenas pelo meu coração de manteiga. (chorei algumas vezes durante o filme). Também amo Moana porque fiz um cálculo frio de que temos muito a ganhar em disputa política simbólica quando uma empresa do tamanho e do impacto da Disney decide ser mais diversa e inclusiva.
PS.: O que foi a Disney Br trocando a música da trilha sonora no trailer brasileiro por Glad You Came, do The Wanted? Queria estar morta. Coloquei legendado gente, porque ninguém merece Moana ao som de The Wanted.
Fontes Bibliográficas
- Deekipa Bahri: Feminismo e/no pós-colonialismo;
- The Guardian: Disney pulls Maui children’s costume amid claims it is offensive;
- Spivak: pode o subalterno falar?
- New York Times: It’s racist, but hey: it’s Disney
Anexo
- Decidi usar a palavra “morena” uma vez que os habitantes da Polinésia não são brancos, e estão longe de o ser. No entanto, eles se afastam das noções sociais que engajamos no Brasil para definir alguém como negro.
Blog Comments
Yara
28 de janeiro de 2017 at 01:14
Adoro animações que tentem fugir de estereótipos e adoro mais ainda quando tem personagens femininos fortes,bem distantes daquela baboseira de ” mulher só pensa em futilidades e interesses românticos,mulheres precisam de príncipes pra serem salvas e mulher tem que ser boazinha e passiva pra ser respeitada”. Fiquei com muita vontade de assistir essa animação,mesmo sendo da Disney que, confesso, não nutro muita simpatia.
Al Zadig
2 de abril de 2017 at 22:37
Primeiramente, a revolta: post sobre cowash com produto x ganha centenas de comentários (nada contra, na verdade ele que me toruxe até o site). Contudo, post também relevante, sobre assunto extremamente relevante tanto do ponto de vista social e inclusivo, quanto na análise realista da empresa por trás do filme, e zero comentários? Triste realidade!
Parabéns pelo post, bem escrito e argumentado! Embora eu seja da parcela que realmente é anti Disney (por mais que eu reconheça a importância história que a empresa teve em animação, quadrinhos, etc) me convenceu a assistir o filme.