As práticas de racismo e discriminação estão presentes em diversos ambientes: nas ruas, no seio familiar, na escola e no trabalho. Aqui no Cacheia já recebemos relatos de mulheres que se sentiram pressionadas a alisar os cabelos para manter o emprego e certamente eles se somam a muitos outros divulgados nas mídias. Algumas vezes a necessidade de manter o emprego leva muitas pessoas a não conversarem sobre o assunto ou não denunciarem o fato. Outras vezes, a falta de informação faz com que práticas de assédio e discriminação passem despercebidas.
Estou em transição há dois anos, ainda não está 100%, mas quase lá. Enfrento resistência das pessoas ao meu redor desde que eu decidi parar com os alisamentos. […] Fui cortada por não ser branca e pelo cabelo sim. Doeu muito, me senti impotente diante disso. Só não registrei queixa pois não tinha como provar. E tem disso pra todo lado, às vezes ouço “recomendações” pra escovar o cabelo pra tal evento, claro que não as sigo. (Manu, 21 anos, leitora do Cacheia)
Nós sabemos que o mercado de trabalho é racista quando o critério de “boa aparência” por vezes se traduz basicamente na necessidade de usar o cabelo alisado. Também fica muito claro que há algo errado quando ofertas de emprego são divulgadas nas redes sociais exigindo que a candidata seja branca sem razão aparente. Nesse contexto é preciso que fique claro que existem diferenciações que são juridicamente aceitas e outras não. Se não há nenhum motivo razoável para não contratar uma candidata negra como promotora de vendas por exemplo, poderíamos nos perguntar em que medida um anúncio de solicita uma mulher loira, alta e magra para esse cargo pode ser problemático. Por outro lado, existem casos em que um critério de seleção pode fazer sentido e se encaixar nos valores constitucionais. Por exemplo: contratar guardas penitenciárias do sexo feminino para uma penitenciária feminina ou contratar um artista negro para a comemoração da Semana da Consciência Negra. (Alvarenga, 2015, p.14-15)
§ 2o Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)
Mas além desse tipo de caso, existem muitas formas formas de assédio, racismo e discriminação no ambiente de trabalho e é muito importante estarmos atentas a elas. Não é normal que você receba menos que seus(uas) companheiros(as) de profissão trabalhando sob a mesma carga horária e realizando as mesmas funções. Se você e suas colegas de trabalho foram contratadas para desempenhar uma função administrativa por exemplo e você frequentemente é direcionada apenas para a realização de trabalho manual – como carregar papéis ou servir o café – enquanto as demais colegas de profissão realizam “trabalho intelectual”, saiba que isso também não é normal . Não é normal que você seja obrigada a trabalhar além da sua capacidade corporal ou além do limite de horas estabelecido por lei.
Estou em transição capilar desde Novembro de 2014. Dentro do local de trabalho lido com muitas pessoas. Por parte dos chefes não há problemas, mas as pessoas que atendo se mostram receosas quando vêem meu cabelo. […] Falar sobre aceitação nos locais de trabalho e de estudo são essenciais para uma boa convivência tanto em equipe quanto consigo mesma. (Antônia, 25 anos, secretária escolar e leitora do Cacheia).
Racismo ou injúria racial? Qual a diferença?
Vale a pena destacar que existe um certo descompasso entre o que os movimentos sociais caracterizam como “racismo” e o que a lei classifica como racismo e saber essa diferença é muito importante. Quando um texto discute o racismo aqui no blog por exemplo, estamos tratando da existência de um sistema que estabelece, justifica e legitima a dominação de um grupo racial sobre o outro. Essa relação é pautada numa suposta superioridade do grupo dominante que irá acessar com mais facilidade recursos econômicos, políticos e simbólicos. Assim, num sistema tido como racista existe uma lógica desigual de organização e de acesso a direitos. (GPP – GeR, 2010, p.100)
Sob o ponto de vista da lei, existe uma distinção entre aquilo que é considerado um crime de injúria e o que é considerado como crime de racismo. Para nos ajudar a pensar essas diferenças, convidamos o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular que sistematizou o quadro abaixo:
A sistematização mostra que o crime de injúria racial é direcionado para uma pessoa e se baseia em termos e palavras que depreciam sua raça/cor, etnia, religião ou origem. O racismo por exemplo lado, afeta um conjunto de pessoas e se configura principalmente na restrição de acesso a espaços, cargos, etc.
Sobre o uso do cabelo natural, a passagem pela transição capilar o uso de tranças, é importante dizer que o empregador não deve abusar dos seus poderes e ir contra a dignidade e a moral dos seus funcionários. Assim, o empregador não pode te coagir a tirar as tranças ou usar o cabelo escovado porque considera que tranças “são sujas” ou o cabelo natural é “desleixado”, a partir de um referencial próprio e sem qualquer justificativa razoável que impeça a realização do trabalho. A pressão para que uma funcionária volte a alisar os cabelos e comentários depreciativos persistentes podem ser considerados assédio moral e são passíveis de punição. O mesmo também vale para colegas de trabalho: se comentários maldosos sobre seu cabelo são feitos de forma repetitiva diariamente e isso te afeta emocionalmente, isso também pode ser considerado assédio moral.
“Assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou a integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho. É uma violência sub-reptícia, não assinalável, mas que, no entanto, é muito destrutiva. Cada ataque tomado de forma isolada não é verdadeiramente grave; o efeito cumulativo dos microtraumatismos frequentes e repetidos é que constitui a agressão”. (Alvarenga, 2015, p.15-16)
Dito tudo isso, compartilho aqui as orientações fornecidas pelo Coletivo Margaridas para quem deseja buscar por informações/ajuda. É importante dizer que nosso sistema judiciário também possui falhas e que ele mesmo merece ser discutido. Apesar disso, esperamos que essa postagem possa contribuir para a difusão de informação sobre o assunto.
Racismo, injúria racial e assédio moral no trabalho: o que fazer?
Se o caso de injúria racial ou racismo está ocorrendo no momento, você pode:
-Acionar a Polícia Militar (190) e pedir que compareçam para fazer parar a agressão, registrando devidamente a ocorrência em um Boletim de Ocorrência (B.O.);
-Se possível, permaneça no local e identifique testemunhas, além de tentar, ao máximo registrar os fatos;
-Se o caso for de racismo e for lavrado o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), insista que a investigação seja feita por meio de Inquérito. O Inquérito é o procedimento administrativo realizado pela Polícia que consiste na apuração da infração penal visando fornecer elementos informativos para a propositura de ação penal. O TCO, por sua vez, é procedimento similar porém realizado em crimes de menor potencial ofensivo (são as contravenções penais e os crimes que a lei define como pena máxima 2 anos, cumulada ou não com multa – que não é o caso do racismo que, como visto na tabela, tem pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa).
– Se o fato já ocorreu e você deseja denunciá-lo, utilize esta lista para encaminhar o caso ou colher informações que lhe sejam pertinentes:
FEDERAL
- Ouvidoria da Seppir. Telefone: (61) 2025.7000. Email: [email protected]
- Disque 100
ESTADUAL – MG
- Núcleo de Atendimento a Vítimas de Crimes Raciais e de Intolerância/NAVCRADI (Polícia Civil). Endereço: Rua Bernardo Guimarães, nº 1.571, 2º andar – Bairro Funcionários – Belo Horizonte – MG – CEP: 30.140-081. Telefones: Gabinete 3272-2452 Inspetoria 3272-2243
- Conselho de Promoção da Igualdade Racial – CONEPIR. Av. Amazonas, 558 – Centro, Belo Horizonte – MG, 30170-130. Telefone (31) 3270-3200
- Ouvidoria do MPMG. Ligue 127 gratuitamente ou (31) 3330-8409 e (31) 3330-9504. Para fazer sua manifestação online, acesse: https://www.mpmg.mp.br/conheca-o-mpmg/ouvidoria/apresentacao/apresentacao.htm
- Subsecretaria de Políticas de Igualdade Racial da SEDPAC/MG. Subsecretária: Cleide Hilda [email protected] Telefone: 3916-7304. Rod. Pref. Américo Gianetti, 4001, B.: Serra Verde – BH / MG. Prédio Gerais / 2º andar
MUNICIPAL – BH
- Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos. Rua dos Timbiras, 2928, 5 º andar / Barro Preto. Telefone: (31) 3295-2009 – Email: [email protected]
- Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial – CPIR. Endereço: Rua Espírito Santo, 505 9º andar Bairro Centro – Belo Horizonte. Telefone: 31 3277-4626 | 3277-4696 | Fax: 31 3277-4264. E-mail: [email protected]
Sobre o Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular
O Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular surgiu em 2012, na cidade de Belo Horizonte/MG, com objetivo de prestar assessoria jurídica a movimentos sociais e populares, comunidades tradicionais, ocupações urbanas e rurais, ativistas entre outros. O Coletivo tem como horizonte (i) a garantia dos direitos humanos, de forma solidária e colaborativa com os grupos assessorados; (ii) o entendimento de que o campo do direito é um importante espaço de luta; (iii) o uso das ferramentas jurídicas como instrumento de mudança social; e (iv) o potencial transformador do trabalho em rede (a Rede Margarida Alves) – colaborativo e horizontal. Por partirmos da compreensão de que a proteção dos indivíduos isoladamente enfraquece a luta pela efetivação de direitos, atuamos preferencialmente em tutelas coletivas que visem à defesa dos Direitos Humanos com destaque para o direito à moradia, os direitos das mulheres, população em situação de rua, juventude, crianças e adolescentes, população carcerária, comunidades tradicionais, indígenas e também das populações atingidas por grandes empreendimentos.
Nossos contatos:
E-mail: [email protected]
Telefone: (31) 3889 – 2013 – Facebook: https://www.facebook.com/coletivomargaridaalvesap/?fref=ts
Site: http://coletivomargaridaalves.org/
Referências bibliográficas
ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. Discriminação racial e assédio moral no trabalho. Juus Laboris. Biblioteca digital da justiça do trabalho. Disponível em: <http://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/1939/75180/2015_alvarenga_rubia_discriminacao_racial.pdf?sequence=3>
https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/981/966
Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça GPP – GeR Módulo III/ Orgs. Maria Luiza Heilborn, Leila Araújo, Andreia Barreto. – Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2010.
BARROSO, Luís Roberto. Razoabilidade e isonomia no direito brasileiro. In: VIANA, Márcio Tulio; RENAULT, Luiz Otávio Linhares (Coord.). Discriminação. São Paulo: LTr, 2000, p. 224.
Sugestão de leitura:
O racismo corporativo à brasileira e como você faz parte dele
Conheça também a página “Tira isso”, que visa reunir relatos de discriminação no ambiente de trabalho.
Observações:
*Os nomes das leitoras que contribuíram para a postagem foram alterados para preservar suas identidades.
Blog Comments
Geise
11 de novembro de 2016 at 14:47
Matéria muito boa, indiquei pras meninas do serviço. Parabéns!
Maressa De Sousa
11 de novembro de 2016 at 17:42
Muito obrigada Geise! :)
Angélica
12 de novembro de 2016 at 07:09
Otima materia! Parabéns e continuem firmes. Vocês têm tanto espaço e direito como qualquer outro ser. Ainda não entendo como pessoas podem tratar o seu próximo com distinção a qual nunca existiu.
Lys Marie
12 de novembro de 2016 at 12:12
Adorei a matéria, bastante informativa! Não sabia que injúria racial e racismo são coisas diferentes. Viu divulgar e espalhar o conhecimento!
Muito bom o blog!! :-)
Maria
12 de outubro de 2017 at 21:00
Estou sofrendo isso no trabalho. Eu passei em um concurso, e ao entrar na secretaria, uma semana depois a assessora da secretária começou a falar do meu cabelo. Ela disse que ele ficava “muito no olho” (e ninguém nunca reclamou disso, existem outras que meninas no trabalho que o cabelo fica no olho, mas o cabelo delas é liso) e que eu deveria prendê-lo. Eu resisti, falei que era assim que eu me sentia bem e gostava dele assim. Ela insistiu, ficou uns 5 dias assim, até que me chamou para uma conversa particular e disse que eu não poderia continuar assim. Eu atendia ao público e não podia deixar meu cabelo “daquele jeito”. Perguntei se havia algum regimento interno que regulava isso, me respondeu que sim. Desde então, eu uso meu cabelo preso, e eu odeio isso.
Ela é advogada, e eu já liguei para a OAB, e não me ajudaram em nada. Eu não sei o que fazer…
Maressa De Sousa
14 de outubro de 2017 at 11:42
Oi Maria, tudo bem? Com “cabelo no olho” você quis dizer franja? Eu já ouvi falar de recomendações do tipo e imagino que o objetivo é basicamente deixar o rosto mais visível. Nesse caso, se há de fato um regimento, te sugiro simplesmente usar uma tiara, uma trança tiara ou uma presilha para prender a franja e ao mesmo tempo, permitir que o resto do seu cabelo fique solto. Por outro lado, compreendo que o que você está relatando é a percepção da existência de um tratamento diferenciado de acordo com o tipo de cabelo, e aí reside o problema. Sei que isso pode angustiar bastante e por isso pode ser interessante buscar informações e orientações sobre o assunto. No final desse post tem o contato do coletivo que me auxilou na construção desse post, tenta entrar em contato com elas ou com os órgãos competentes do seu estado para ver alternativas possíveis. Como eu moro em MG, citei alguns órgãos daqui, mas cada estado tem espaços que podem tirar dúvidas e acompanhar essas questões. Te desejo muita força nessa caminhada.
Abraços!