Usei alisantes, progressivas e relaxantes durante muito tempo e num determinado momento aquilo já não me fazia bem. Meu cabelo já não crescia como antes e minha autoestima já não ia muito bem. Pesquisando na internet, descobri que era possível voltar ao meu cabelo natural e decidi me livrar de todas aquelas pontas lisas. Depois do corte meu cabelo começou a crescer e formou um black power. Um dia eu estava voltando pra casa, quase cochilando encostada na janela do ônibus quando paramos num engarrafamento. De repente, um homem do lado de fora começa a gritar: “Olha o cabelo daquela mulher, mano!“. “Vem cá cara, vem ver o capacete daquela mulher”. O cara gargalhava e não satisfeito, chamou um amigo para compartilhar do riso. Riso de mim. Riso do meu cabelo. Confesso que paralisei, tranquei os olhos e não consegui abrir até que o ônibus arrancou. Quando abri os olhos, algumas pessoas do ônibus me encaravam. Não sei se esperavam constrangimento, choro, qualquer coisa assim. Não fiz nada. Ficou tudo amarrado num pequeno nó na garganta.
Tem riso que a gente ri junto. Quando a gente se atrapalha enquanto cozinha, quando a gente tropeça por pura distração, quando a gente compartilha aqueles sentimentos comuns: o medo, a raiva, a ansiedade. A verdade é que é bom descobrir que o outro também viveu determinadas experiências. Mas o riso de alguém que aponta para um cabelo crespo não é o riso que eu compartilho. O motivo do riso não é algo que me faz me sentir tão humana quanto o outro que ri. Não é algo que nos aproxima, pelo contrário, é algo que nos afasta. O que está implícito é uma demarcação de fronteiras “meu cabelo é bom, o teu é ruim”.
Para que o riso de concretize, por vezes exige-se que determinados valores sejam colocados de lado temporariamente. Por exemplo: todos aprendemos desde muito pequenos que não se deve rir de um colega caiu no chão, mas durante uma pegadinha em que alguém se espatifa essa recomendação é completamente ignorada em nome do riso. Mas será que dá pra rir de tudo?
No documentário “O riso dos outros” uma humorista diz que nós só conseguimos rir de alguém que caiu porque essa pessoa não morreu e essa pessoa não sou eu. Portanto, nessa situação, o sujeito é externo a mim e à minha realidade. Se no lugar de um estranho estivesse seu avô por exemplo, talvez a situação não fosse tão engraçada porque você nutre relações emocionais com a pessoa que é objeto de riso e a queda provavelmente vai te despertar preocupação. E aí a gente se pergunta: e quando a piada é sobre violência sexual? E quando ela humilha alguém que pertence a determinada classe social? Dá pra guardar os valores no bolso e rir? Dá mesmo para imaginar que estamos numa bolha temporária e que ao mobilizar as mazelas de determinada população estamos recriando apenas ficcionalmente aquele sofrimento sem qualquer prejuízo real? Nesse aspecto a coisa vai se encaminhando para duas perguntas: 1- Quem é frequentemente objeto de riso? 2- Que sujeitos fazem a piada e com que intuito?
Palavras não são apenas palavras. A linguagem é permeada por símbolos e é centro de disputa. Palavras têm impacto: marcam a infância daqueles que sempre ouviram que seu cabelo é “ruim”, de quem foi chamado de “macaco” pelo atendente de uma loja. Mas o racismo não se manifesta apenas na fala. Mora também nas representações. A linguagem participa da construção do conhecimento e é também por isso que as imagens escolhidas para representar pessoas, ações, acontecimentos e períodos históricos devem ser objeto de questionamento ou minimamente de curiosidade. Olhar com desconfiança para determinadas coisas é um exercício de pensamento necessário.
Por muitas vezes o humor se vale do preconceito e/ou do racismo para despertar o riso. Recentemente uma mãe que está lutando para retirar as imagens do filho que tem síndrome de Pfeiffer virou notícia. As fotos da criança estão sendo usadas em memes e se espalharam nas redes sociais. Uma das imagens compara a criança a um animal: um cão da raça pug. Eis aí o riso que afasta e que lança o outro na fronteira do não humano. Mais do que isso, é preciso considerar que por vezes o riso que lança o outro no plano do não humano é perigoso porque abre caminho para a recusa, a violência e a repressão.
E já que estamos no Carnaval, vamos falar também das vezes em que as pessoas se fantasiam de negros por diversão. As roupas são bastante coloridas e algumas possuem enchimentos de espuma no bumbum. Muitas fantasias representam uma espécie de uniforme utilizada por empregadas domésticas e as perucas tentam imitar cabelos crespos. A pele é pintada de preto e a boca num tom de vermelho vivo, com contornos exagerados para dar a impressão de lábios absurdamente grandes. Basta lembrar do que é a figura da “nega maluca” para entender do que se trata. E diante de tudo isso alguns dirão “é homenagem!”.
Nesses casos, a primeira palavra que vem à cabeça é black Face: uma prática que ganha força entre os atores brancos americanos nos séculos XIX e XX. Esses homens se pintavam de preto, negros americanos que eram impedidos de atuar. O Black Face enquanto gênero teatral teve fim com movimento por direitos civis dos negros nos EUA, mas as práticas de Black Face continuaram acontecendo, inclusive no Brasil. Personagens de programas televisivos brincam livremente com a imagem de homens e mulheres negras protegidos pela capa do “humor”.
Nos quadrinhos, no teatro, na televisão, nas fantasias e até nos objetos é possível encontrar várias representações que contribuem para reforçar estereótipos: a proximidade com uma figura animal, a sujeira, a caracterização exagerada dos traços corporais: o feio, o desprezível o risível.
O incômodo que essas imagens causam é muito evidente. Mesmo assim, ao apontar para o racismo nessas práticas a resposta é quase sempre “eu não sou racista, o racismo está na sua cabeça”. Reconhecer que determinadas frases e atitudes são racistas é uma dificuldade enorme porque exige revisar e até abandonar certos hábitos, talvez por isso o caminho mais fácil é dizer que não o são. Ainda nesse sentido, vale lembrar dos debates sobre o “racismo cordial” que discutem a forma como se dá a percepção do racismo no Brasil: muitos estão prontos a dizer que de fato existe racismo no Brasil, mas dificilmente alguém irá reconhecer sua própria conduta ou discurso como racista.
Quantos e quantos textos, tweets e posts tenho visto circular recentemente reclamando da “geração mimimi”. Alguns textos afirmam: “Antes você podia brincar sem ser chamado de homofóbico, gordofóbico, de racista ou machista”. Pois é. Nomear essas essas relações pode e certamente causa incômodo e toda essa movimentação é parte de um processo de luta. Alguns acham chato o fato de supostamente já não poderem mais fazer piadas machistas por exemplo. Mas a gente sabe que não é bem assim. Basta procurar lá no Youtube, dar uma passada no Netflix ou ir nos teatros para assistir diversos shows de stand-up que sobrevivem com piadas homofóbicas, gordofóbicas, machistas e racistas em vários níveis. Essa disputa em torno da linguagem e dos direitos é desigual e é por isso que muita coisa continua circulando amparada pela naturalização de determinadas relações: “mulher é assim”, “preto é assim”, “pobre é assim”.
Quando você se sente autorizado a fazer piada sobre um negro que é ladrão ou sobre o cabelo de uma mulher negra que escondia sei lá o que, pode ser que pra você essas frases sejam “só brincadeira”, mas é bom ter em mente que esses estereótipos não ficam lá na sua rodinha de conversa, não ficam no teatro, não terminam quando a TV é desligada. Eles se perpetuam e agem de maneira perversa sobre o “objeto” da piada todos os dias. Será que é por isso que é mais fácil rir dos outros?
Jovens negros são mais vulneráveis à violência no Brasil
Saúde e mulher negra: quando a cor da pele determina o atendimento
Aos que dizem que “somos todos humanos” como modo de calar as discussões sobre o assunto eu digo que sim, somos iguais em muitas coisas, mas não somos corpos sem história. Vivemos numa sociedade ocidental, num país que foi colonizado e saqueado por europeus, que escravizou negros por 400 anos, que viveu um processo de abolição da escravidão tardio e que ainda colhe os resultados desse histórico de violência contra homens e mulheres negras. Somos um país de classes e desigual em oportunidades: no acesso à educação, ao transporte, ao lazer. E vocês sabem disso. Pelo menos boa parte das pessoas que aciona esse argumento sabe de tudo isso e prefere ignorar só pra não ter que assistir debates mais próximos da próprio cotidiano. Não questionar é cômodo. O contrário é que é um desafio.
Sugestões de leitura:
Pequeno guia negro e feminista para não fazer feio nas fantasias de carnaval
Entre o grotesco e o risível: o lugar da mulher negra nos quadrinhos no Brasil
Blog Comments
Fátima Rocha
7 de fevereiro de 2016 at 21:25
Acompanho o blog há um certo tempo e achei maravilhoso o seu texto. Somente cada um sabe a dor e a alegria de ser quem é. O Brasil é um país racista e machista sim! Tentam disfarçadisfarçar, empurrar goela abaixo mas está ali, implícito ou explícito. Amei sua iniciativa. Parabéns!
Gabriela
7 de fevereiro de 2016 at 23:37
Gostaria de agradecer por sempre tocar neste assunto com propriedade e delicadeza. É muito importante que as pessoas pensem nesse assunto. Brincadeiras de mal gosto, que reforçam estereótipos, são tão comuns que algumas pessoas acreditam que é algo normal. Ridicularizar alguém não é normal. Eu não aceitar seu desrespeito não é ‘mimimi’. Eu já não gosto quando dizem que ‘Fulana é uma preta bonita’. Por que a Fulana não é só ‘bonita’ ou uma ‘mulher bonita’. Me parece que dizem ‘Fulana, mesmo sendo preta, é bonita’. O racismo está implícito no nosso dia a dia. Temos que ficar vigilantes! Se não exigirmos respeito, ninguém dará de graça. Obrigada pelo post. É um prazer ser sua leitora.
Maressa De Sousa
10 de fevereiro de 2016 at 19:49
Oi Gabriela, tudo bem? Fiquei imensamente feliz lendo sua mensagem. Agradeço muito. Escrever sobre esses assuntos é uma necessidade que eu sinto diariamente, mas é também muito desgastante. É bom saber que algumas pessoas estão lendo esses debates que proponho por aqui. Esse não é meu melhor texto, e considero que boa parte daquilo que escrevo é falho e carece de constante reflexão e revisão. Apesar disso é gratificante entrar em contato com outras pessoas. Eu é que agradeço :)
Abraços!
Yara
9 de fevereiro de 2016 at 19:35
O assunto é triste e preocupante,mas você argumenta lindamente sobre ele. Fico imaginando sua dor quando o cara falou aquilo com você. É muito,muito triste mesmo. Me lembro que na escola um menino zoava meu cabelo,porque ele era bem volumoso.E eu não conseguia dizer nada. Guardava a minha dor pra quando chegasse em casa e pudesse chorar livremente sem ninguém ver. Tem uma turminha,principalmente os que se auto denominam “humoristas”,que dizem que o politicamente correto está muito chato,que a humanidade está chata e que não se pode mais brincar com nada.
Se for pra humilhar uma pessoa pelo seu físico,condição social,idade e outras coisas vocês não podem não!E devemos sim sermos chatos,reclamarmos,pois quem faz a piada é alguém que não sabe a dor que é.
Parabéns pelo texto.
Emília Araújo
10 de fevereiro de 2016 at 16:27
Maravilhoso texto. Precisamos aprender a respeitar a todos…passar valores bons pra nossas crianças, para que não se tornem adultos preconceituosos.
Gabriela Costa Carvalho
19 de fevereiro de 2016 at 17:49
O cacheia é um blog engajado e isso faz a maior diferença do mundo para que a transição seja um processo político, de reconhecimento de si e das outras. Parabéns pelo texto. Fica a dica de um filme que trata sobre o tema de risos, estereótipos raciais e mídia: “Bamboozled”.
Maressa De Sousa
19 de fevereiro de 2016 at 20:31
Muito obrigada pela dica Gabriela, não conheço o filme mas vou procurar :) Abraços!
Juliana Braga de Oliveira
23 de fevereiro de 2016 at 20:10
O fato de ser branca, não me torna imune na defesa contra o racismo.Tenha orgulho da minha ancestralidade. Essa prática/escrotidão é crime no Brasil. Não me escondo! Quando eu era criança, caía na porrada pra defender minha irmã, hoje eu bato boca , com quem for. Esse é o tipo de comportamento que não aceito!!!Minha família é toda misturada, tem cabelos de diversas texturas, olhos de várias cores…e tenho orgulho disso! Vamos mostrar cachos e peles coloridas sim!!! Fico bolada como em pleno 2016, ainda rolam essas coisas. Já perdi oportunidades de emprego porque não quis alisar o cabelo. Já fui chamada de macaca albina e sarará, porque a minha figura externa os traços da minha genética negra. Tenho orgulho e nunca vou me calar.
Michele Souza
26 de fevereiro de 2016 at 20:01
É isso aí! precisamos cada vez mais combater o racismo e principalmente “brincadeiras” que servem para humilhar os negros. Não podemos nos calar! eu como mulher e negra, já sofri preconceitos, preconceitos que só comecei a compreender depois que comecei a cursar Geografia, e na Universidade debatíamos muito essas questões, e através da busca de informações, leituras,passei ter uma melhor compreensão. Por isso fico muito feliz por ver os negros na Universidade estudando e debatendo sobre o racismo, na verdade os grupos que sofrem preconceito como os homossexuais, as mulheres, e outros grupos, lutando pelos seus direitos. Eu quero é mais !
Antonia Ataide
21 de março de 2016 at 16:30
Gostei muito da matéria e quero ler outras assim também. Eu gosto muito de ler sobre feminismo e outras “minorias”, como as lésbicas, por exemplo. Achei bem acertado a sua observação e fiquei eu mesma com vergonha desses dois palhaços que ousaram fazer aquela observação acintosa sobre o seu cabelo… esses ridículos, aff!
Do riso que não compartilho. – Curso de Redação
3 de janeiro de 2017 at 08:29
[…] por Ana Catarina no Cacheia […]