Temos falado bastante em identidade aqui no blog. Diante dos textos que estou lendo e também de alguns incômodos pessoais, achei que seria interessante trazer esse assunto discutido um pouco mais a fundo. O objetivo é falar sobre identidade e processo de autoafirmação, sobre as lutas por reconhecimento, conflitos políticos, dentre outras coisas.
Números sobre a população negra no Brasil
Para começar, vou levantar algumas questões que podem parecer um pouco descoladas da discussão proposta a princípio mas que podem ser úteis. Em primeiro lugar, é preciso considerar que as lutas por redistribuição já foram foco de vários movimentos sociais. Ao considerar que vivemos numa sociedade desigual economicamente, o problema da má distribuição de renda no Brasil aparece. Segue-se que essa divisão da sociedade em classes ocasiona problemas como a posse de terras por número limitado de cidadãos. O movimento em torno da reforma agrária está relacionado a essa questão e envolve vários personagens que frequentemente se chocam: membros do movimento sem terra, pessoas ligadas ao agronegócio, políticos, etc. No norte do país, a invasão de terras indígenas também desperta a atenção para a efervescência desses conflitos políticos e demonstra que uma das vias para buscar proteção ou exigir direitos do Estado é a articulação entre grupos. Por outro lado, quando falamos na questão indígena ou na questão quilombola por exemplo, fica evidente que não se trata apenas de uma questão de classe. Há uma luta pelo reconhecimento dessas populações que passa pela questão cultural, pelo histórico de repressão que esses grupos vem sofrendo, etc.
Quando abordamos a situação da população negra no Brasil esse duplo aspecto também aparece. O Mapa da Violência 2014, mostrou um aumento de homicídios da população negra em 38,7% de 2002 a 2012. Visto pelo quadro regional esses números variam, mas a situação geral brasileira é aquela descrita no fim do texto divulgado e que aponta para uma “associação inaceitável e crescente entre homicídios e cor da pele das vítimas, na qual, progressivamente, a violência homicida se concentra na população negra e, de forma muito específica, nos jovens negros”. (p.144)
Ao olhar para esses números é preciso pensar também que além da cor, há um recorte de classe importante. São os membros de classes mais baixas que sofrem mais efetivamente essas violências. A questão socioeconômica é muito importante: a falta de acesso a direitos básicos como educação, saúde, transporte, moradia, justiça, mercado de trabalho, etc. Populações que sofreram historicamente com um sistema que contribui para perpetuação do racismo enfrentam uma série de obstáculos para acessar a justiça e são subrepresentadas no sistema político.
Confeccionei a tabela abaixo a partir de dados do Censo de 2010 no Sidra. Notem que conforme a renda aumenta, mais a questão da cor fica evidente. Os números mostram que pretos e pardos possuem rendas menores. Outro número importante disponível no site mostra que a população preta e parda analfabeta é significativamente superior à população branca (Branca: 6.052.81; pretos e pardos: 12.893.141).
Apesar dos últimos avanços, especialmente no número de negros na universidade, a situação dos negros no Brasil ainda precisa discutida. As desigualdades sociais e o racismo permanecem. E quando colocamos em questão outros recortes, isso fica ainda mais evidente. Podemos lembrar por exemplo da situação das mulheres negras que são discriminadas por cor e por gênero e aí a coisa fica ainda mais complexa. Como levar essa situação para o Estado?
Identidade como estratégia política
Diante das injustiças sociais, formam-se grupos que buscam discutir a questão negra e articular ações políticas, participar de debates públicos, marchas e outras atividades. Grupos mais militantes, grupos de caráter auto organizado, grupos mais ligados aos órgãos governamentais, etc. São várias as frentes de luta e algumas delas vão mobilizar “identidade negra” como um meio para pensar essas experiências. Falar numa “identidade negra” como alguma coisa que é única e bem definida é um equívoco na medida em que nossas identidades são diversas, na medida em que um(a) negro(a) que reside na periferia possui uma trajetória diferente daquele(a) que tem melhores condições sociais, ou daquele(a) que foi criado(a) na zona rural, daquele(a) que está na universidade, daquele(a) que vende balas num sinal, daquele(a) que foi criado(a) pelos pais, daquele(a) que é órfão, etc. Nós somos atravessados por muitas experiências. Somos múltiplos.
Por outro lado, falar em identidades negras tem seu papel já que as identidades são constituídas tanto por aspectos externos ligados a essas trajetórias e interações coletivas quanto por questões mais subjetivas, aquilo que em geral não conseguimos nomear de outra coisa senão de identidade. Quando falo sobre a construção de uma identidade enquanto mulher negra, estou apontando que minha trajetória é marcada pelo fato de eu ser mulher e negra e viver numa sociedade que é machista e que é racista e que esses dois aspectos são centrais nesses caminhos múltiplos que me atravessam. Minha identidade foi construída através de um processo que é individual e também coletivo. Quando grupos de mulheres negras, mulheres crespas e mulheres cacheadas são formados, há em alguma medida elementos que ligam essas histórias: algum sofrimento vivenciado na infância, a passagem pela transição capilar, situações cotidianas comuns, etc. Os cruzamentos aparecem.
Ao mesmo tempo, quando falamos na luta política, consideramos os problemas que atingem a população negra de forma mais ampla (e que estão ligados de algum modo à história das relações sociais no Brasil) e que já foram aqui citados. Nesse momento é importante pensar numa luta política articulada por meio de grupos. Tempos atrás li a fala de alguém que se não me falha a memória era um líder religioso do Candomblé e que apontava para uma mudança importante na estratégia para sobrevivência daquele grupo religioso. Segundo ele, antes para que aquele grupo sobrevivesse era preciso se esconder, já no cenário atual era preciso se mostrar. Como minha memória é terrível, não vou poder atribuir aqui os créditos para um pensamento tão relevante para essa discussão. Mas espero com isso mostrar que a afirmação de uma identidade enquanto grupo (no nosso exemplo enquanto grupo religioso) é importante em muitos contextos. Não dá para esquecer que vivemos num sistema democrático com certos procedimentos para participação. Vir a público e vocalizar demandas de forma articulada é um dos poucos modos para fazer-se ouvir dentro da esfera política.
É claro que existem iniciativas feitas fora desse escopo – que não deixam de ser políticas – e que também possuem sua relevância. Estamos assistindo ao nascimento de vários espaços para discutir racismo, estética negra, transição capilar, etc. Não tenho dúvidas de que isso representa um avanço, é a tomada de um espaço que antes não era ocupado. Essas iniciativas contribuem para desmontar certas concepções que associam características negras àquilo que é negativo, ruim, temível, feio, além de colocar negros e negras como protagonistas na produção conhecimentos outros, inclusive sobre nós mesmos. As palavras são um campo de disputa.
Falar em identidades negras nesse âmbito, especialmente da transição capilar, é importante já que muitos homens e mulheres se reconhecem como negros e negras após assumirem seus cabelos crespos. Dizer isso não significa que pessoas negras com cabelos alisados não possam se reconhecer como negras, mas é apontar para um processo crescente de reconhecimento através do encontro com uma estética negra. Sabe-se que no Brasil a questão de autoreconhecimento como negro é ainda complicada e que nas estatísticas e estudos muitos homens e mulheres negras aparecem autodeclarados pardos. Os motivos para isso são vários.
O “problema” da identidade
Apesar de atribuir um papel à afirmação de identidades como estratégia para luta política, também percebo que alguns perigos estão envolvidos nessa ação. O primeiro deles é aquilo que apontei algumas linhas atrás: quanto mais a identidade é concebida como rígida, fixa, fechada, mais as pessoas que pretendemos descrever saem do plano real e concreto. Mais subjetividades e trajetórias diferentes são sufocadas e perdem agência em nome de um desenho linear de sujeito. Aí vem aquela história de que para ser reconhecido como parte de um grupo e ter legitimidade, alguém precisa se portar de um jeito “x”, usar “y”, gostar de “z” e acreditar em “w”.
Quanto mais fechadas as identidades, menor abertura pra o diálogo e mais dificuldade de articulação com outros grupos. Nancy Fraser descreve parte desse cenário ao olhar para lutas por reconhecimento que não fomentam a interação e tendem a encorajar o separatismo, a intolerância e o autoritarismo.
Evidentemente, ao tocar nesse ponto não tenho como intenção dizer que esse cenário descreve nossa situação atual, mas não deixa de ser importante pensar no tipo de caminhada que estamos trilhando. É verdade que por vezes é difícil dialogar: encontramos esse fechamento no outro em função de uma posição privilegiada na medida em que não é exposta a determinadas violências e coerções. Talvez por isso este outro não consiga ver ou não queira olhar para outras vivências, permanecendo num lugar bastante cômodo.
De todo modo, o que é mais interessante para nossa conversa nesse tópico é apontar que o temor em relação aos possíveis perigos da afirmação de identidades faz com que alguns autores prefiram se distanciar dela. Aparentemente, para Nancy Fraser seria importante considerar que certos membros da sociedade não possuem a mesma oportunidade de participação na vida política e nesse caso, uma das peças-chave para ação seria justamente a superação da subordinação para garantir paridade de participação e o combate de padrões de valores culturais que lançam certos sujeitos na inferioridade e impedem a paridade de participação (machismo, racismo, etc). A autora considera importante ainda combater a desigualdade material já que a ausência de recursos e de acesso a determinadas coisas impede participação. Em resumo, a ideia é não estacionar apenas numa política que olha para identidades, mas trabalhar a partir de três pilares: redistribuição, reconhecimento e representação. E considerando aqueles números que vimos lá em cima isso parece mais do que necessário.
Em suas obras, Giorgio Agamben trata de um “ser qualquer”, tomado independente de sua propriedade, de sua inclusão em um conjunto, de sua pertença ou origem. O ser qualquer é singular, é um ser tal qual. Falando assim no melhor estilo “academiquês” parece mesmo difícil entender. Mas basta considerar que Agamben trata, dentre outras questões, de dispositivos que controlam, ordenam, organizam, determinam e conduzem a vida. Podemos pensar em vários exemplos: o próprio Estado, os meios midiáticos, a escola, as tecnologias, etc. A meu ver, um dos grandes “alertas” que pairam sua obra é como as identidades absolutamente fechadas podem ser capturadas por esses dispositivos ou como identidades fechadas também podem fomentar o crescimento da violência absoluta sobre determinados grupos. Não pretendo gastar muito tempo nessa discussão porque tenho pouca propriedade para falar desse autor, mas sugiro a leitura de “O que resta de Auschwitz“. O objetivo maior aqui era só “dar notícia” de que existe essa reflexão :)
Claro que a gente tem que pensar nisso tudo e ver em que medida essas ideias cabem pra pensar nosso cotidiano. Num cenário de debate público brasileiro que tem se mostrado cada vez mais polarizado e mais violento, considero essas coisas bem relevantes. É interessante pensar essas questões também até num escopo um pouco menor, nas relações que entre cacheadas, crespas, lisas, alisadas, onduladas, etc. Como conciliar tantos interesses sem criar cada vez mais separações? Como unir sem criar paredes?
Referências
Agamben, Giorgio. A comunidade que vem.
Franzer, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação.
Sugestões de leitura:
Vidas perdidas e Racismo no Brasil
IBGE: em 10 anos, triplica percentual de negros na universidade
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