Família, identidade, cabelo natural e reprodução do preconceito: uma vivência

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mãos dadas, família, união

Nasci com o cabelo crespo. Tenho poucas lembranças de quando era criança e poucos registros fotográficos também. Num deles, tenho cinco anos e estou com o cabelo preso e cheio de cachinhos feitos pelos dedos da minha mãe. Aos sete estou segurando uma bola de futebol e meu cabelo parece esquisito. Até onde eu sei o fotógrafo da escola jogou água e usou um pente mas não recordo direito. Numa foto aos dez anos estou com o cabelo escovado e preso. Escova também feita pela minha mãe, que a essa altura tinha ganhado um curso de cabeleireira dos patrões. O caso é que sempre foi assim: minha mãe ajudava, penteava, trançava, fazia hidratação, cortava, enrolava e esticava. Eu mesma, só comecei a cuidar depois de adolescente.

Aos dez anos eu já tinha escovado, pranchado e até experimentado uma dessas químicas que na época eram consideradas “leves” como os relaxantes e permanentes do tipo “kids” e “teen”. Também já tinha queimado a testa e a orelha de tanto me mexer na cadeira enquanto minha mãe passava a chapinha. De certa forma, eu gostava do resultado dessas intervenções mas vez em quando me cansava e acabava ouvindo de algum parente próximo que mulher pra ficar bonita tinha que sofrer mesmo. Às vezes também ouvia um papo na cozinha, uma história de que tal pessoa da família tinha sorte de ter cabelo bom. 

Me lembro que nessa época, sempre que visitava uma parente da família ela passava a mão nas nossas bochechas (minhas e de um dos meus irmãos) e dizia que a gente tinha uma pele maravilhosa. Um dos meus irmãos sempre foi negro de pele mais escura, assim como a minha. O outro, o caçula, nasceu com a pele clara como a família do meu pai e foi escurecendo aos poucos, sem nunca chegar ao meu tom ou o da minha mãe. Cresci vendo os dois brigarem pelas razões mais diversas e assistindo ao caçula chamar meu outro irmão de tiziu e carvão na hora da raiva.

Quando decidi voltar ao cabelo natural eu já tinha dezessete. Uma das primeiras pessoas pra quem eu contei foi minha mãe, que quis saber logo: “mas você não vai usar aqueles estilo black power não né?“. E eu achei aquilo engraçado porque a foto de casamento dependurada na parede do meu quarto mostra minha mãe com o cabelo natural, redondo e cheio. Depois de um tempo ela passou a dizer que eu me inspirei nela. Um dia decidiu cortar o cabelo e se livrar do alisamento. Agora sou eu quem ajudo ela a cuidar dos cachos recém descobertos.

Hoje, sempre que estou cuidando do meu crespo, um tio comenta sobre meu cabelo e compara aos próprios fios (grossos e lisos). Ele me diz em tom zombeteiro que se eu tivesse nascido de cabelo bom não teria esse trabalho todo. Eu não respondo quase sempre e quando não me contento, só digo que ele não sabe de nada.

Pra dizer a verdade, eu estou bem resolvida. Já sei quem eu sou e embora tente melhorar todos os dias, ser menos sisuda, mais prestativa e branda com as pessoas, acho que boa parte da minha “identidade” já formou suas raízes. Raízes que vem das minhas experiências e dos ensinamentos  da minha família. Sim, essa mesma família que é lugar de (muito) aprendizado, orientação, cuidado, proteção e que também me colocou uma série de questões ao longo da vida.

Decidi compartilhar um pedacinho dessa vivência porque sei que muitas meninas que estão em transição capilar e não encontram apoio entre os seus familiares. Sinceramente não tenho resposta sobre o que se deve fazer diante dessas situações. Talvez o diálogo, a paciência ou o próprio tempo resolvam tudo. Talvez não. O fato é que a família não é um núcleo isolado do mundo e por isso mesmo a família não está isenta de reproduzir racismo e preconceito. Se a gente tem isso em mente ao menos consegue se preparar e reunir forças para viver relações tão delicadas quanto essas.

 

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Relacionamento amoroso e transição capilar: um capítulo a parte 

Transição capilar e família

Maressa De Sousa

Maressa, 26 anos, baiana. Cientista Social, mestra em Antropologia. Terapeuta capilar, cabeleireira e trancista. Ama filmes e livros de ficção. Para ela, a transição capilar marcou o início de muitas outras transformações.

Blog Comments

Seu texto é maravilhoso e chegou na hora que eu mais precisava. Minha mãe tem cabelo cacheado tipo 4a mas a anos ela alisa, eu nasci com cabelo cacheado mas conforme fui crescendo minha mãe alisava meu cabelo com escova e chapinha muito parecido com o que você descreveu, na adolescentes inteira usei cabelo liso, agora estou tentando achar minha identidade e nesse momento de transição nessa tentativa de assumir meus cachos acabo ouvindo muitos comentários negativos da minha família, querendo ou não magoa, mas também fortalece. Muito obrigada por compartilhar.

Oi Sabrina, muito obrigada pelo carinho. Desejo muita força nessa etapa de transição.

Abraços!

fiz meu bc e intem pela primei vez sai na rua com meu 3c 4a na rua o da minha filha e 3b 3c e todo mundo falava ki o cabelo da minha filha era LINDO e o meu ficavam indiferentes o povo ainda tem muioto proconceito pode soltar cacheado crespo não

É verdade Chaysla, infelizmente existe um preconceito em relação aos cabelos crespos muito forte. Embora as coisas estejam mudando aos poucos, os cabelos cacheados ainda são aqueles que mais aparecerem nas propagandas e que são mais “bem aceitos”. Mas temos que lutar para que esse preconceito não se perpetue.

Abraços!

Olá, Maressa.
Sou branca de cabelo ondulado e tenho duas filhas mulatas. Tenho consciência, estudo tudo sobre cabelos e tento estimular nas meninas toda a beleza do cabelo ao natural. Eu mesma, após anos fazendo escovas, hoje mantenho meu cabelo ondulado e grisalho, como ele é, apesar de todas as opiniões contrárias. Parabéns pelo depoimento. É sempre melhor sermos nós mesmos e inteiros, respeitando o próximo sem nos desrespeitar.

Chorei com o texto. Boa parte do que li reflete o que passei e continuo passando. Quando criança (e até pouco tempo) sempre aceitava o que me era imposto sem questionar. “Alise, dê chapinha, estica esse cabelo”. Era isso que ouvia e obedecia. Conheci o mundo dos cachos graças à minha prima que fez a transição e embarquei junto. Hoje ainda escuto críticas da minha mãe que sorrateiramente me pede pra diminuir o volume da “juba” etc. Dói? Dói. Mas isso não me abala pois agora sou quem eu sempre quis ser, sem tirar nem por. “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

Obrigada Maressa por esse texto!! Excelente!! Família é a primeira vivência em “sociedade” e sempre acontecem esses comentários. Tinha uma tia que me questionou sobre o volume do meu cabelo, durante um almoço, na frente de todo mundo. Disse que era desleixado e parecia cabelo de hippie. Relevei, pois eu tb não gostava do meu cabelo. Quando alisei, a mesma tia, na frente de todos, lamentou por eu ter perdido os cachos e o volume…eu perguntei o que ela queria? Se estava cheio, reclamava, se alisei não estava bom tb… Além de muitas outras situações.
Estou na segunda transição, há 8 meses sem dar progressiva e 5 meses sem escovar ou pranchar. Penso que a transição serve para a gente repensar na vida e na essência. Quando vejo pelo seu relato e o das outras meninas nos comentários, vejo que o preconceito no Brasil é quase epidêmico. Vejo também o quanto me esquivei das minhas raízes negras para agradar os outros. Era mais “fácil” parecer uma índia, cabocla, que dar vazão à minha ancestralidade negra.
Não me canso de agradecer a vocês do Cacheia! pela conscientização.

Oi menimas!! FiZ MEU BC AGR,precosl da dica de vcs,que linha psso usar? Bjs

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